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Jornal “O Tempo”

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A linha condutora de “Labirinto Azul”, terceiro álbum de carreira da cantora Ana Lee, já  disponível nas principais plataformas digitais, teve como ponto de partida a escolha de duas faixas em particular: “Xote de Navegação”, de Dominguinhos e Chico Buarque, e “Meia- Noite”, de Edu Lobo e Chico. “A primeira,  talvez pela reverberação em mim do tema da implacabilidade do tempo”, discorre a cantora à reportagem do Magazine, lembrando gostar dos significantes presentes na canção: navegação, navegador, caminhante. “Gosto da metáfora do viajante pela vida, até o nunca mais. E a letra utiliza as palavras: navegação, embarcação, barco, barcaça.  Diz um trecho: ‘Pra quem anda na barcaça, tudo tudo passa. Só o tempo não’. Ou: ‘No mesmo instante eu vejo a flor que desabrocha e se desfaz’. Essas sementes encontraram solo fértil em mim, no meu desejo de cantar esse tema”, pontua. 

Já “Meia-Noite” – que, frisa, também não deixa de conter um reflexão filosófica sobre o tempo – já a emocionava há tempos.  “O esfacelamento dos ideais, o navegador que perde o oriente e entra em espirais…”, repassa. Ao comentar com o amigo e compositor Walter Garcia sobre essas linhas iniciais do novo trabalho, ele de imediato lhe enviou a canção “Labirinto Azul”, que acabou batizando o petardo.

“‘Labirinto Azul’ tem aquele ápice que beira o desespero: ‘algas, peixes, facas, leme…Será tudo igual ao mar? Estranho mar…’. Chorei muito ao ouvir essa música pela primeira vez. Depois, Walter me disse que escreveu a letra inspirado em ‘O Velho e o Mar’, de Hemingway,  que remete à história de um velho que vai pescar sozinho, e, após dias de muita luta e quase morte, fisga um peixe maior do que o seu barco pode suportar. Amarra-o, então, do lado de fora da embarcação, mas, durante a volta, o peixe é todo comido pelos tubarões, fica só a carcaça. Essa história é uma ótima metáfora para o retrocesso que estamos vivendo”, diz ela.

Outras músicas foram se juntando a esse feixe de um modo orgânico, passando pelo crivo da cantora junto a uma equipe integrada, por exemplo, pelos arranjadores Bráu Mendonça e Ozias Stafuzza, com quem, aliás, ela já trabalha há 20 anos. Caso de “Castelo”, composta pelo marido de Ana, Mário Montaut. “Adoro ela há anos, desde que o conheci. Chamo-a de ‘canção física metafísica’. Poética, afirmativa da beleza da vida… é o outro lado. ‘Tempo vira espaço a transgirar… Vida jorra já no aqui lutar! Vida, quero mais e mais… ‘ virou um lindo maracatu cearense. Forte e Belíssima”, enaltece. “Sabia também que gravaria várias do O Zi (Ozias), que tem formação em psicologia, como eu. Tem a Caymmica  ‘Minha Ciranda’, as mineiras ‘Trilhas’ e ‘Paragens’ e o samba ‘Lagoa Funda’. Como disse o Daniel Brazil numa resenha recente, as águas doces e salgadas estão presentes por todos os lados do disco, até onde a vista não alcança”.

“Loucas Noites”, por sua vez, é um poema da norte-americana Emily Dickinson (1830 – 1886) que ela musicou. “Estava guardada desde 2003-2004, mais ou menos. “Adoro Emily Dickinson, e já musiquei vários de seus poemas. ‘Futéis os ventos para um coração no porto. Adeus bússola, adeus mapa! Remando no Eden… Ah! O mar (de novo ele, o mar)… se eu pudesse essa noite em ti ancorar’. O poema evocou a melodia. Pelo menos, a minha melodia”. Já ‘O Amor é uma Droga Pesada’ do Antonio Herci e Maria Rita Kehl é classificada por ela como “fortíssima”. “Adoro cantar poemas de mulheres, sobre mulheres. Adoro essa psicanalista e poeta, a Maria Rita.  E cantar o amor, sempre. O amor como droga pesada é uma de suas facetas. Mas essa canção é bem diferente, o poema foi musicado pelo amigo Herci há muito tempo. Fizemos só com percussão e voz, ficou bem forte, gostei muito. E o disco tem muitas músicas que falam sobre o amor também. Sentimentos, estados de espírito”.

Com acento mineiro temos  “A Página do Relâmpago Elétrico”, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos. “Somos apaixonados pelo som do Clube da Esquina, Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes… Chegamos a ensaiar um repertório inteiro dos mineiros. Colhi ‘A Página’ porque, além de amá-la, o Itamar (Vidal, co-produtor, junto a André Magalhães) tinha feito um arranjo fabuloso. E é um disco dos que mais adoro do Beto, o que tem ‘Lumiar’, tem ‘Choveu’…. que me deixa num raro estado de uma contemplação.  Já fui a Lumiar, cidadezinha no Rio de Janeiro, próxima a Friburgo, cheia de cachoeiras e tribos de diferentes correntes meditativas, digamos assim. Eu cantaria todas as do Beto Guedes, do Milton, Lô, desses mineiros todos também. É um outro lado da música brasileira. Um capítulo à parte, essa música de Minas”, elogia.

A entrada de Zeca Baleiro no projeto também veio como um presente. “Eu não o conhecia pessoalmente. Só como apreciadora de seu trabalho. Sabia que ele tinha musicado poemas de Hilda Hilst, ele tem muito apreço pela palavra também. A letra de ‘Toada’ é dele, e a música é do amigo Cássio Gava, compositor paulistano. Conheci essa canção na voz do Cássio e ela já era meio hit entre nossos amigos. Gravei ‘Toada’ por último”, rememora.  “Ele (Zeca) foi super legal, generoso e fluímos muito bem. Adorei gravar com ele”.

Por último, mas não menos importante, ela enaltece a participação dos envolvidos, dos já citados Bráu Mendonça, O Zi, Itamar Vidal e André Magalhães, até as participações  de Zeca Baleiro e Swami Jr, “passando pelos maravilhosos Mané Silveira, Mário Manga, Lincoln Antonio, Ramoska, Lula Gama, Paulo Biraa, Ricardo Stuani e Paulo Sarkis”. Em tempo: o disco físico pode ser adquirido pela loja virtual da Tratore, Americanas e Submarino. 

Confira, a seguir outros trechos da entrevista. 
Deu para notar seu apreço a Chico Buarque… Pode falar sobre sua relação com a música dele? Na verdade, considero a nossa música, de uma maneira geral, riquíssima, mas Chico Buarque, ao lado de Tom Jobim, Milton Nascimento, Edu Lobo, Caetano, Gil, Dorival Caymmi, Paulinho da Viola e tantos outros… Eles tocam em temas íntimos, comuns a todos nós. E também em regiões do nosso ser que, na verdade, nem saberíamos existir não fossem eles. O Chico tem aquela dignidade e coerência. Sua produção, com o passar do tempo, vai acompanhando suas transformações, sua vida, novas reflexões, reinvenções. Além de tudo, Chico é um compositor que nas últimas duas décadas tem produzido menos, mas com inovações surpreendentes, como nas canções “Carioca”, “Subúrbio”, “Querido Diário”, “As Caravanas”.

Como a pandemia impacto o lançamento do CD e, claro, sua vida? Que sentimentos te invadiram no início e o que tem pensado agora? O que tem feito no isolamento? Bem, a pandemia, claro, impediu um show de lançamento. Um grande transtorno para todos. Pessoalmente, tenho sorte por trabalhar em outras atividades e não depender financeiramente da música. O que garante uma justa sobrevivência. Difícil, como para todos, mas digna. O que é bom e nem tanto. Porque gostaria de trabalhar mais musicalmente. Por outro lado essa condição me dá liberdade artística. Meu marido e eu estamos até bem, até curtindo nossa casa bem mais do que antes. Mas a pandemia tornou inevitável a agudeza da consciência da fragilidade da vida, a tsunâmica certeza do quanto a vida é maior do que nós. Que não temos controle algum. Podemos tentar fazer o nosso melhor e só.

Findo tudo isso, como imagina o mundo? Acredito que, assim como as doenças todas, o câncer, a Aids…aprenderemos a nos acomodar a mais essa doença. A tomar os cuidados necessários, vacinas serão desenvolvidas. Não sei se haverá o que falam como sendo o “novo normal”. Ninguém sabe, vamos ter que pagar para ver. O problema é que o novo ponto de partida pós-pandemia  é um mundo em retrocesso, regredido em todas as instâncias. Política, econômica, social… E vamos ver o efeito do isolamento sobre toda a comunidade, principalmente sobre o desenvolvimento das crianças, tão prejudicadas pelo distanciamento social, pelos medos que circundam essa doença.

E o que quer fazer, ao fim de tudo isso, profissionalmente falando? Encerrei uma fase com esse terceiro álbum. Não sei ainda o que farei, mas tenho vontade de gravar outros sons, músicas diferentes. Vários projetos em mente, mas ainda não escolhi um caminho.

A capa do disco traz fotos do mar e gaivotas, bem como uma sua, sem maquiagem, que não deixam de ser curiosas, principalmente por você ter falado tanto do mar. Gostaria que falasse sobre os motivos das escolhas. Recentemente – mas antes da pandemia, claro – fiz uma viagem à Turquia. De Istambul, visitamos por terra várias cidades, passamos pelo mar Egeu, mar Negro, o estreito do Bósforo… quando chegamos de volta à Turquia, numa pequena embarcação, e vi aquele mar com aquelas gaivotas, tirei umas 50 fotos. Ali, já tinha certeza que elas iriam para o disco. O mar de Istambul, lindo, lindo. E as gaivotas em pleno voo… Solos ou em bando… Senti uma identificação profunda com elas. Quanto à minha foto, realmente não havia me atentado para esse detalhe (de estar sem maquiagem). O que determinou a escolha da foto foi a felicidade que aquela imagem, no todo, me propiciou. Gostei do clima dessa foto tirada em uma viagem, na cidade de Éfeso, na região da Anatólia.

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